Cirurgiã reconstitui clitóris e devolve prazer a mulheres mutiladas

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Por Só Notícia Boa
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Cirurgiã Marci Bowers - Foto: Frederic Neema

Uma médica que conheceu de perto o preconceito e a não aceitação do próprio corpo está devolvendo o prazer a mulheres mutiladas, que tiveram seus clitóris cortados. Uma prática bárbara que existe na África e Oriente médio.

A ginecologista Marci Bowers, que tem clínica em Burlingame, na Califórnia, EUA, já ajudou a mais 300 mulheres nesta situação. A operação dura apenas 45 minutos.

Bowers foi a primeira a fazer esse tipo de cirurgia em solo americano, em 2009.

Desde então, oferece o serviço de forma voluntária a quem possa se deslocar até a Baía de São Francisco, mas a pessoa tem que  arcar com US$ 700, quase R$ 2.500 pelo uso da sala de cirurgia.

Em maio, Marci levou sua técnica ao Quênia, após dois anos de preparação.

A médica foi para Nairóbi. Operou 45 mulheres ao longo de duas semanas, com o apoio de equipes locais, e treinou três cirurgiões.

Eles agora podem começar a sanar uma demanda continental, visível pelas centenas de mulheres que ficaram na fila de espera. “Muitas vinham de países vizinhos”, conta Bowers.

O que elas querem, diz a médica, é antes de mais nada restaurar sua identidade. Sentem falta de uma parte do corpo.

200 milhões mutiladas

Estima-se que um quinto das mulheres do Quênia sofreu mutilação genital, uma prática tradicional feita principalmente, mas não só, na África e no Oriente Médio.

Europa e Estados Unidos enfrentam essa realidade em suas comunidades de imigrantes.

O Unicef, Fundo das Nações Unidas para a Infância, calcula haver no mundo 200 milhões de mulheres e meninas mutiladas.

Em alguns países, como Somália e Egito, ao menos quatro em cada cinco mulheres passaram pelo procedimento.

Nos últimos 20 anos, a prática vem sendo questionada. Os números diminuem, mas de forma muito lenta, informa a Organização das Nações Unidas (ONU).

Uma vez crescida e casada, a menina que sofreu mutilação desconhece o prazer sexual. Em alguns casos, não sente nada. Em outros, apenas dor.

“A mentalidade está mudando lentamente”, afirma Bowers. “Muitas buscam sua dignidade perdida. Eu me identifico com elas. Sei o que é querer algo fisicamente e não ter.”

Médica trans

Ela diz isso porque viveu, por décadas, com uma identidade diferente da atual.

Bowers era chefe de um departamento num hospital de Seattle e tinha um casamento estável, com três filhos, mas não se identificava com o próprio corpo, de homem.

Aos 38 anos, após uma cirurgia de mudança de sexo, Marc tornou-se Marci.

Há quase 20 anos, reassumiu suas funções rotineiras, mas na pele de mulher.

A vida amorosa mudou, o casamento legal perdurou (numa parceria com a esposa para cuidar dos filhos) e, na prática médica, Bowers dedicou-se a uma nova especialidade, a da cirurgia de mudança de sexo.

A cirurgiã buscou o médico Stanley Biber como mentor e foi trabalhar a seu lado em Trinidad, no Colorado, transformada em “capital mundial da troca de sexo” pela fama do cirurgião, um pioneiro na prática.

Em 2003, ela assumiu a clientela de Biber, que se aposentava, aos 80 anos. Três anos depois, o mentor morreu.

Bowers herdou seu prestígio, mas ainda estava a alguns anos de encontrar a inovação que abraçaria – sem concordância de toda a comunidade médica.

Cirurgia de 45 minutos

Em 2009, o ginecologista francês Pierre Foldès e sua colega Odile Buisson publicaram os resultados do estudo com a primeira ultrassonografia em 3-D do clitóris estimulado em pleno ato sexual.

O estudo reforçou a tese de que o ponto G existe e é um caminho alternativo de estimulação do próprio clitóris.

Afinal, o órgão é bem maior do que se imaginava e hoje é desenhado com dois bulbos pendendo pelas laterais dos lábios vaginais.

Foldès uniu seu conhecimento ao trabalho humanitário que fazia na África, atendendo vítimas de mutilação. Criou uma cirurgia ambulatorial simples, de 45 minutos.

Os passos básicos consistem em remover o tecido da cicatriz deixada pela mutilação, expor o que restou do clitóris, localizar o “ligamento suspensório” (parte da anatomia que puxa o órgão para junto do corpo) e fazer nele um corte.

“Isso libera o clitóris e permite trazer o que ainda há dele para a superfície”, explica Bowers. Tal manobra só é possível pelo tamanho do órgão – algo que muitos ginecologistas ainda ignoram.

A estrutura interna do clitóris tem até 11 cm.

“Se você assiste a uma única cirurgia, percebe que 95% do clitóris ainda está lá. O órgão é longo, tem até 11 centímetros de comprimento.” A cirurgiã aprendeu tudo isso com o próprio Foldès.

Cirurgias voluntárias

A médica já realizou cerca de 300 cirurgias voluntárias, segundo suas contas.

Em 2014, viajou para o país africano de Burkina Faso, onde 76% da população feminina é mutilada.

Nos Estados Unidos, as estimativas indicam haver entre 200 mil e 500 mil vítimas de mutilação genital. Bowers não cobra por esse atendimento, mas há outras dificuldades no caminho das potenciais pacientes.

Uma é financeira – muitas imigrantes não podem pagar os custos da viagem até a Califórnia. Outras têm medo do procedimento, pois guardam a lembrança do corte e têm sintomas de estresse pós-traumático.

Por último, há polêmica em torno da própria operação, relativamente nova e pouco conhecida na comunidade médica. “Há médicos que dizem: ‘É impossível restaurar o clitóris, não pode dar certo’. Isso é absurdo”, diz Bowers.

Em 2012, Foldès e sua equipe publicaram um estudo, financiado pela Associação Urológica Francesa, que analisou o pós-operatório de 847 pacientes.

Um ano após a cirurgia, mais de 800 delas relataram menos dores durante o sexo e as primeiras sensações de prazer por meio do clitóris. Metade reportou ter atingido o orgasmo.

Na sede da Clitoraid, em Las Vegas, Nadine Gary recebe informalmente esse tipo de retorno. “Jamais vou  me esquecer do telefonema de uma mulher que havia passado pela cirurgia três meses antes. Ela chorava de emoção e queria me contar que havia vivido seu primeiro orgasmo. Isso ocorreu numa noite de 8 de março, Dia Internacional da Mulher.”

Por isso, Bowers está disposta a continuar operando e confrontando os colegas. “A ignorância dos médicos é inacreditável. Teríamos de começar por eles, ensinando sobre a fisiologia do clitóris”, afirma.

Com informações da Época