Homem que passou 43 anos preso injustamente ganha ajuda milionária

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Por Rinaldo de Oliveira
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Kevin Strickland aos 62 anos e aos 18 quando foi preso injustamente - Fotos: El País / The Innocence Project / Dept Policia Missouri

Imagine ficar 43 anos preso injustamente. Aconteceu com Kevin Strickland. Ele foi condenado em 1979 por um triplo assassinato que não cometeu.

Agora, 43 anos depois do erro judicial, ele foi inocentado e finalmente libertado de uma penitenciária do Missouri, no centro-oeste dos Estados Unidos.

E a história da pena errônea mais longa da história dos EUA tocou o coração de 30 mil pessoas desconhecidas que se uniram numa vaquinha virtual e arrecadaram US$ 1,74 milhão aproximadamente R$ 10 milhões para o Kevin.

E não se trata de questionar se esse dinheiro todo paga as 4 décadas perdidas dentro de uma cadeia – claro que não! – O que todas essas pessoas querem é encontrar uma forma de ajudar esse injustiçado em seu processo de ressocialização, após tanto tempo encarcerado.

“Vivi desconectado do mundo, ver a vida me doía muito”, diz o ex-detento ao EL PAÍS nove dias depois de ser inocentado

Sempre se declarou inocente

Strickland sempre se declarou inocente do crime. Em 25 de abril de 1978 (quando ele tinha 18 anos), três jovens na casa dos 20 anos —Sherrie Black, Larry Ingram e John Walker— foram mortos a tiros em uma casa de um bairro operário de Kansas City.

Dois condenados pelo crime, Vincent Bell e Kim Adkins, declararam-se culpados, mas juraram que ele não tinha nada a ver com o crime.

Os familiares tinham corroborado seu álibi daquela noite. Não adiantou. O processo foi fundamentado basicamente no depoimento da única sobrevivente do ataque a tiros, Cynthia Douglas, que ficou ferida e mais tarde se retratou alegando pressões policiais.

Ela tinha conseguido identificar apenas dois dos agressores e, 24 horas depois do ataque, ainda em estado de choque —teve de se fingir de morta para evitar que a matassem—, foi colocada diante de uma fileira de suspeitos, entre eles Kevin Strickland, que a polícia tinha ido buscar em sua casa naquela manhã em que ele iria cuidar de sua filha. Douglas o conhecia do bairro, apontou para ele, e a vida de Strickland passou a ser a vida do prisioneiro 36.922.

Kevin Strickland foi condenado em 1979 a 50 anos de prisão por um triplo assassinato que não cometeu.

Testemunha disse que se enganou

ajuda  ano depois do julgamento, a testemunha começou a dizer publicamente que tinha se enganado, mas só em 2009 escreveu uma carta ao The Innocence Project, a plataforma de advogados que trabalham na libertação de inocentes, com estas palavras:

“Estou buscando informações sobre como ajudar uma pessoa que foi condenada erroneamente. Eu era a única testemunha e naquela ocasião as coisas não estavam claras, mas agora sei mais e quero ajudar essa pessoa”.

As sequelas

Agora 4 décadas depois, ele saiu inocentado com 62 anos de idade, está em cadeira de rodas, fica perturbado com agitação urbana e ainda confunde o passado com a nova realidade.

Mesmo livre, ele conta que continua na prisão. Chama seu quarto de “cela”, sua cama de “beliche”, e diz que de manhã ainda fica quieto, esperando ouvir a campainha avisá-lo de que pode se levantar para ir tomar o café da manhã.

Kevin não reconhece mais Kansas City, a cidade do Missouri onde vivia. Os pais dele morreram, os irmãos se distanciaram, a namorada se casou com outro e ele só viu sua filha cinco vezes nestas mais de quatro décadas.

Mais que isso:  “Não sei falar com pessoas normais, fui criado entre animais”, diz, com uma doçura repentina e desconcertante.

A luta pela liberdade

Durante todos esses anos, ele próprio lutou por sua libertação. Entrou com um pedido na Justiça. Rejeitado. Entrou com um segundo pedido. Rejeitado. Um terceiro. Rejeitado. E assim até 17. Mesmo quando obteve uma carta de Cynthia Douglas admitindo seu erro, o resultado foi uma porta na cara. Não lhe concederam nem mesmo uma audiência. “Liam os papéis e simplesmente diziam que não, viam que não tinha advogado e o ignoravam, quando basicamente usamos as mesmas provas que ele tinha”, diz sua advogada, Tricia Rojo Bushnell.

A luta para ser libertado, embora infrutífera, foi o que manteve Kevin vivo em uma prisão onde viu muitos ao seu redor se matarem.

A vaquinha

Strickland não tem direito a nenhuma indenização porque a legislação do Missouri estabelece que isso só se aplica aos condenados que forem inocentados com base em um teste de DNA.

Mas a sociedade civil se mobilizou por um desconhecido e em pouco mais de uma semana ele recebeu doações que totalizam 1,7 milhão de dólares

Essa solidariedade deixa Strickland emocionado, desconcertado, mas não o faz baixar a guarda.

“Se um de vocês desmaiasse agora, nesta sala, eu sairia daqui sem encostar nessa pessoa. Teria medo de me culparem de alguma coisa.” Não recuperou a confiança nas pessoas? “Não, não…”.

Quando indagado sobre o que quer fazer pelo resto de sua vida, responde inicialmente que gostaria de viajar: “Não sei, a Austrália me vem à cabeça por algum motivo. O Brasil também. Ou a África, eu gostaria de ir lá, descer de uma caminhonete, tocar em um rinoceronte e voltar correndo para o carro para ver se ganho”.

Em seguida, diz que nunca voou e quer evitar pegar aviões. “Morrer em um acidente depois de tudo isto…”, afirma, sem ironia nenhuma.

Ele quer ver seus filhos (aquela bebê e outro que tinha tido antes), quer recuperar a relação com seus irmãos, quer que a doença da coluna que não permite que ele fique de pé por mais de três ou quatro minutos seguidos o deixe viver um pouco.

Ele garante que não tem energia para o ódio, para a raiva, só para viver o que lhe resta.

Com o dinheiro, está buscando uma casa fora da cidade. “Não quero nenhum vizinho em uma milha em volta, não preciso de ninguém, de verdade”. Ver um pouco de esportes pela televisão (“Sabe, Michael Jordan começou sua carreira quando eu estava dentro e se aposentou antes que eu saísse”, comenta), ter cães, dormir sem medo.

Kevin agora, libertado após 4 décadas - Foto: reprodução

Kevin agora, libertado após 4 décadas – Foto: reprodução

Com informações do ElPaís